"Passei a minha vida toda, penosa e lentamente, escalando até ao cume do Evereste. Agora velho, "quebrada a espada já, rota a armadura", olho para trás por cima do ombro e vejo que me enganei"
João Cutileiro
O Largo das Freiras sempre me fascinou, pela beleza das árvores, da história, escondida no velhario das casas e especialmente da Igreja velha, que apesar de abandonada ainda por lá habitavam as imagens em madeira da religião, decapitadas algumas, por brincadeira ou má fé, os montes de livros antigos cobriam o chão, o cheiro intenso a velho pairava no ar, o abondono e o sossego dum templo, onde uma enorme cruja, escolheu para habitar, as pulgas eram tantas, que sempre que podiam tentavam fugir, agarrando-se a nossas pernas, por vezes subia-mos à torre para tocar o sino.
Imagens que recordo com saudades, em minha inocente idade, aí brincava, em frente à casa do Cutileiro, pessoa um tanto asustadora e misteriosa, um olhar ameaçador constante, que nos fazia parar nas nossas brincadeiras do quotidiano, sempre que o Cutileiro regressava a casa no seu velho Citrôen 2 cavalos branco, velho e cansado de tantas vezes subir aquela ladeira, que mais tarde acabou por morrer de baixo de uma àrvore, e por lá ficou fazendo a delícia da moçada que nele brincavam. Um alto muro coberto com pedaços de vidros cravados no topo, separava o seu
mundo, do mundo dos outros. Mistério, que despertava a imaginação de almas tão inocentes e curiosas, que sempre que possível tentavamos desvendar, subindo, e lá em cima era o contemplar do imaginário erótico em pedra do Cutileiro. Por vezes a sorte brindava-nos, com a arte viva da mulher despida, misturada com a pedra nua em forma de mulher, enquanto o Cutileiro explorava a figura feminina, e projectava no papel a sua nova criação.
Hoje quando se fala do Cutileiro, me vem à memória, estes momentos inocentes de minha infância, e um sentimento que o Cutileiro que conheci, era um homem muitos anos à frente do tempo que vivia, o que o tornava um pouco incompreesível para a população em geral. Não foram tempos fáceis para o artista, penso eu, mas venceu e apareceu com o D.Sebastião, que tanto se esperava num dia de nevoeiro, envolto no pó de pedra, na imagem viva do Cutileiro. O João Cutileiro, venceu na vida e voltou a sorrir, um grande artista, e claro nenhum grande artista vê as coisas como realmente são, caso contrário, deixaria de ser um artista.
Um pouco de João Cutileiro:
Em 1966, numa visita a uma fábrica de mármores em Lagos, descobre as potencialidades
criativas, e também económicas, do corte da pedra com máquina eléctrica. Na sequência disto, Cutileiro trabalhará exclusivamente em mármore e pedra, concebendo um estilo escultórico em que os objectos tanto se caracterizam pela simulação de um tratamento artesanal, como ostentam a visível caligrafia da máquina Cutileiro abre a porta para a grande ruptura na escultura portuguesa do século XX, que ocorrerá efectivamente na década de 80. Fá-lo não só através da sua própria obra, mas igualmente pelo trabalho de formador na Escola da Pedra em Lagos, por onde passaram alguns dos artistas, como José Pedro Croft e Manuel Rosa, que protagonizam essa transformação.
A década de 60 marca a escolha da temática que irá dominar toda a sua produção, o erotismo, particularmente explorado através da figura feminina, mas também presente nos seus pássaros e flores.
1973 é o ano de D. Sebastião, a peça mais polémica de toda a sua carreira. Para além dos (muitos) sentimentos que esta escultura, colocada numa praça da cidade de Lagos, possa ter suscitado, D. Sebastião marca uma ruptura definitiva na estatuária nacional, ao ser o primeiro monumento a desafiar a sua lógica comemorativa. Cutileiro apropria uma das figuras mais emblemáticas da mitologia portuguesa, criando um antimonumento, assente na ambiguidade (sexual) do jovem rei, desmistificando simultaneamente o seu estatuto heróico e a suas virtudes guerreiras.